terça-feira, 28 de julho de 2009

A NECESSÁRIA VIOLÊNCIA DA JUSTIÇA


“A Guerra é pai de todas as coisas – de uns faz deuses, de outros homens, de uns livres, e de outros, escravos”. Filósofo grego pré-socrático, Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.),


Tanto em nossa razão subjetiva (fruto de um lógos instrumentalizador, que recolhe e ordena, classifica, infere e deduz segundo a utilidade de nossos próprios interesses, lucros e vantagens individuais ou coletivos) quanto nossa razão objetiva (outro lógos, de reflexão e discernimento que abarca e perpassa o pensar-dizer possível, englobando a totalidade, o “todo”) associamos Justiça à Paz, tomando-os quase por sinônimos.

Acessar esses lógos (razões subjetiva/objetiva) é dispor de agentes de compreensão ética e moral. Lembremo-nos que a razão subjetiva, relativa ao sujeito, está bem definida quando o sofista Protágoras proclama que “O homem é a medida de todas as coisas, das que são porque são e das que não são, porque não são”.

Já a razão objetiva impõe a ideia de que um objetivo possa ser racional por si mesmo, independente do sujeito, como intentaram os criadores dos grandes sistemas filosóficos tais como Platão, Aristóteles, a escolástica e o próprio idealismo alemão.

Uma vez evidente essa apreensão dualística da ratio, do lógos, ponderemos sobre o emprego da violência. A palavra “violência” vem do latim e significa força. E, “violentus” é aquele que faz uso impiedosamente exagerado da força. Sendo assim, a palavra violência aderiu à violação, dilaceração, brutalidade, desmedida. Uma vez que a violência física é a mais aparente e chocante, automaticamente, associamos violência a sangue e isso nos causa aversão.

Curiosamente, mesmo nas representações mais arcaicas da deusa grega, da sabedoria e justiça, Palas Athena, identificamos a imagem de uma lança (ou de uma espada, numa versão posterior). Qual é o significado da presença de um objeto que simboliza a força da guerra e da violência, nas mãos da guardiã da Justiça?

A apresentação de uma arma, instrumento de violência, se opõe ou, ao menos de imediato, não coaduna com Paz. Mas, contrariando nossos sentimentos mais compassivos, podemos atinar a razão de sua existência como ferramenta necessária para se estabelecer, restaurar e manter a Paz. A força (representada pela lança ou a espada), empregada com justa medida pela Justiça é condição sine qua non para que impere a Paz. Sabemos que sem Justiça a paz não é possível, e ela têm de ser firme.

Filha do soberano Zeus, Athena é zelosa guerreira. Gestada na cabeça do pai, enquanto não nasce, as dores de cabeça do ordenador do Cosmos são inevitáveis. E assim como nasce (miticamente) do lógos do pai, graças ao empenho do mestre da téchne, Hefestos, também a Justiça não prescinde do operador do direito.

Vale dizer, Athena é patrona de um tipo muito específico de violência. Trata-se do inevitável combate feito com inteligência e astúcia, motivado por um ideal, um valor honroso. Guerreia somente enquanto último recurso, quando se torna insuficiente a resolução diplomática de qualquer polêmica. Uma batalha também pode ser encarada como derradeira e importante argumentação na defesa da justiça quando todas as outras vias falharam.

Como dito acima, assim como atinamos à plausibilidade de dois tipos de razão (subjetiva e objetiva), inferimos haver também dois modos distintos de conceber o uso da força/violência: o necessariamente legitimado e o desvirtuado uso. Violência não é (somente) sangue.

A natureza (physis) é impiedosamente violenta em sua dýnamis (potência). Nos assola a violência dos mares, dos ventos e até das paixões, pois, na ousía (essência), não somos poupados do que há de natural em nós. A própria criação da vida de um novo ser não se origina sem determinada violência: o vitorioso e singular espermatozóide que engendrou a alma (psyché) de que quem lê essas linhas, teve forças, lutou e muito para romper a resistente barreira da parede de um óvulo.

Origem, florescimento, plenitude, degeneração e decrepitude (geres, a velhice maldita) até o inexorável fim. Quando lhe é de direito, o sol invade a escura madrugada e, precedido pelo espetáculo da aurora, avança impondo sua luz; tal qual o inverno atual a suceder o outono, que naturalmente acata o fim desse seu ciclo.

Temos também na música, um dos mais belos, inefáveis e transcendentais exemplos do bom uso da violência. É extasiante constatar o paradoxo de que através do emprego de certa violência, aplicada com a intensidade adequada e no devido kayrós (tempo oportuno) um compositor extrairá as mais belas melodias: estendendo as cordas com virtuose, deleitar-nos-á a alma.

Vislumbra-se uma muitíssimo bem orquestrada harmonia (sophrosyne): a “visível”, passível de ser recolhida pela razão subjetiva, do sujeito; bem como a “invisível”, recolhida por uma razão objetiva, pontilhando todo o Cosmos (ordem) da galáxia em que habitamos. Observe que nosso planeta Terra se situa entre as mitológicas divindades/planetas Vênus (Afrodite) e Marte (Ares) -, também subjetiva e objetivamente, equilibramo-nos entre o amor e a guerra.

Ainda que nossa razão subjetiva não tenha alcançado o “Ser em si e por si” de uma razão objetiva, sabemos que a reunião das ações que empreendemos como pessoas individuais formam o todo coletivo, culminando na aparente totalidade desse mundo em que vivemos.

Ao furtar-nos à consciência da necessidade do emprego da boa violência/força, abdicando de nossa responsabilidade na obrigação de Pensar e agir, cerceamos, tolhemos nossa liberdade. Se, fracos, paralisamo-nos pelo temor de sermos removidos de nossa preciosa (embora cada vez mais frágil) zona de conforto e, como avestruzes, enterramos a cabeça no chão, promovemos indesejada violência: a injustiça, fruto da omissão. Devemos atentar ao fato de que, ao nos esquivarmos dos combates, nos omitindo numa chamada à ação, sobretudo política, estamos sendo coniventes com os desmantelos de nossos dirigentes. Essa (falta de) atitude erige o pântano no qual chafurdamos: numa política (pólis) juridicamente deteriorada e pútrefa.

Muitas vezes, nas ações empreendidas em nossa vida particular e pública, optamos por preservar o status quo, manter a paz e a harmonia a qualquer preço, encobrindo uma situação sabidamente injusta. Sobrevém-nos uma pseudopaz, a um custo muito mais elevado (sim, valoramos!) do que se perseguíssemos a verdadeira Paz indissociável da Justiça. Livres, ao escolhermos isso, fomentamos mentiras deslavadas, premiamos a perfídia, perpetramos injustiça.

Numa passagem da Odisséia, narra Homero, que o ardiloso rei de Ítaca, Ulisses (Odisseu) apresenta-se ao gigante ciclope chamado Polífemo, dizendo que seu nome é “ninguém”. Ameaçadoramente acarinhando a própria barriga, prontamente o ciclope assegura: “pois de ninguém será o meu jantar!”. Num arremesso certeiro, Ulisses, atinge em cheio o olho de Polífemo. O filho de Poseidon, já cego, desesperado, aos brados, exige do pai que o vingue, dizendo ao deus dos mares que quem o atingiu foi “ninguém”: “O nome dele é ninguém! Procure ninguém.”

Recentemente, o Presidente de nosso Senado, Sr. José Sarney, afirmou que: "Ninguém vai acobertar ninguém”. E que “Ninguém vai evitar que qualquer um seja punido como deve ser”. Como a astúcia pode ser vil: é impossível encontrar “ninguém”.

Eis o bom combate. Não devemos promover a barbárie, empunhando lanças ou espadas, mas sejamos fortes e corajosos o suficiente para que, em todos os âmbitos (público e privado), manifestemos nosso desejo de que a Justiça seja assegurada.

Não vivemos no melhor dos mundos, talvez nunca tenhamos vivido mesmo, mas não é justo que, acovardados, neguemos a nós mesmos o direito de conquistá-lo.

Luciene Felix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da
Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC
www.esdc.com.br
Blog: www.lucienefelix.blogspot.com
E-mail:
mitologia@esdc.com.br

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